quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Rua do Bú: Quinta feira, 2 de julho de 1987

         O dia estava ensolarado, o asfalto tremia no horizonte, de forma a minar o vapor de uma poeira gasosa presente no betume. Marcavam nove horas e trinta e quatro minutos quando do semáforo reluziu o verde, o mesmo instante em que o leproso atravessou a rua, em meio a tantos carros, motos, pessoas, cachorros e caos. Quem o acertou foi uma mulher, de sessenta e sete anos, que dirigia um Passat quadrado. 
       O perímetro urbano é seu próprio bioma, e faz as suas regras para a seleção natural. Isso é evidenciado pela dinâmica que os hominídeos se apropriam desse espaço.
         Aquele leproso era conhecido, costumava beirar aquelas calçadas todo dia, tinha se aposentado por invalidez - a lepra era o menor dos seus problemas. Também era marcado pelo abandono da família, dos amigos, e mais intensamente, da cidade. Ele pedia água nos estabelecimentos, por vezes entregavam vinagre, para divertimento do grande circo itinerante de sádicos que frequentam a Rua do Bú, região central da cidade.
        A rua do Bú era coloquialismo para o cenário, que inicialmente tinha sido pensado para ser um Boulevard nos moldes franceses, a rua era larga com um grande canteiro central. Mas faltou a adesão do bairro, que não tinha nenhum francês, mas sim uma parte de descendentes de espanhóis; uma população segregada de rebentos libaneses e; o leproso, que não estava em nenhum desses grupos. Tinha nascido em berço de palha, numa casa de taipa, caído numa família que colhia as mágoas e dores da subserviência forçada ao trabalho.
        A mulher que dirigia o Passat viva no setor industrial, e tinha ido dirigir o Passat pela primeira vez na área central. Tinha tirado carteira e gostaria de mostrar à cidade - e principalmente aos senhores falastrões da rua do Bú -, que era independente, pois isso se mostrava raro: uma mulher com o passado e a marca que carregava desde nascença, conseguir habilitação para dirigir após completar sessenta e cinco anos. O Passat quadrado agora estava parado, com o leproso em baixo, e a motorista estava em transe, com as mãos fincadas na espuma preta do volante. 
       A mulher que vivia num dos bairros mais distantes do centro, e comprou o Passat mês passado, após ter completado dois anos de Carteira de Habilitação, estava chorando no volante. Estava sozinha. Tinha vivido uma vida sozinha, em face dos desafios que intermitentemente a impunham, de se casar, de se submeter a uma estrutura patriarcal vigente: era solteira, não tinha filhos, os pai morrera a dez anos e a mãe a sete anos e três meses. Não tinha irmãos nem irmãs. A melhor amiga era sua vizinha. E lá estava ela, no centro da cidade, longe de casa, e no antro dos libaneses e espanhóis. A única pessoa que ela conhecia naquela multidão de pessoas que cercavam o Passat, era o leproso que estava em baixo do seu carro.
       As pessoas, naquele horário predominantemente homens, aposentados, descendentes de espanhóis e libaneses, tiveram a fúria de verem o humilde leproso ser atropelado. Aqueles mesmos homens que riam do enfermo bebendo vinagre e vomitando na calçada. O dono da "Vivienda", pensão que encarava o semáforo, abriu com violência a porta do Passat, e jogou a mulher no chão. "Assassina!" ele iniciou o linchamento verbal. A turba de descendentes árabes e ibéricos ia se voltando para a mulher. Viam-na como suja, mal quista por natureza, e esse evento foi o estopim para a concretização da violência que eles objetivavam. Foi o filho daquele dono de pensão quem estapeou o rosto da mulher pela primeira vez. E a sequência só teve fim quando ouviram o barulho de giroflex. 
     Eram nove horas e cinquenta e dois minutos quando alguns homens arrastaram o leproso para perto do meio fio, saindo debaixo do Passat e entrando debaixo do Sol. A mulher gritava de desespero, sangrava. A viatura tinha acabado de chegar e colhia depoimentos do dono da "Vivienda".
       O leproso ainda estava vivo.








quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Rotina do Leão verde

Quem me vê em lugares correntes,
com o Sol reluzindo nas mesas riscadas,
e a mochila em cima da cadeira azul
não sabe o quanto lamento por estar aqui.

Você vê meu sorriso fácil,
de dentes claros, uma simpatia.
Mas meu amor, eu te pergunto:
você já me viu sorrir?

Claro, isso está muito individual,
tratemos de dois ou mais.
Há sorrisos reais por aqui,
ou todos querem sair?

Sim, imagino a resposta,
Pirenópolis. Bahia. Um deserto.
Mas olha: Dalí é o lugar
que chegamos mais perto


Hoje eu descobri estar morto


Sim, o enunciado não remonta ao engano. Hoje, em uma bela quinta feira, descobri estar morto, mortinho da Silva. E isso não é ruim, acreditem, é até reconfortante saber que minha morte é real, e ter a plena consciência de que a realidade não precisa de mim.

Como Alberto Caeiro me foi maravilhosamente compatível, é interessante e confortante pensar na felicidade que se dá ao saber da menor importância do morto estar morto, falando para si.

Mas assim vão meus apontamentos que deixam consciente de minha morte: Eu morri porque não tenho porquê viver. Pelo fato irônico de ter tentado com todo clamor viver, eu acabei morrendo. Por tentar lutar contra amarras, grades, prisões, armadilhas, cordas, forcas, grilhões, nós, gravatas, algemas, quartos escuros sem janelas, presilhas, prendedores, cortes de cabelo, cortes de discurso, cortes inglesas e francesas e o império brasileiro; eu me vi em uma situação desastrosamente abismal que me enterrou na maior das melancolias já sofridas, o que tomou como consequência a minha morte.

Após essa descoberta, seguiu a descoberta de me ver sozinho. Sem ela nem ele, sem eles nem elas, uns poucos na fronteira em pontes de madeira e corda. E aqueles que vivem e que estão ali comigo, pela lógica racional natural, me deixarão em alguns anos, o que me leva a morrer novamente, claro.
Após a decepção/realização da minha morte e solidão, houve a tristeza de um choro autêntico e doído, uma dor realmente livre de pensamentos lineares, que arrancou toda atmosfera presente em todos ambientes presentes em um mundo impossibilitante de felicidade devido a uma corrente de lama e guerras a favor do Estado.


Peço desculpas aos que ficam. Mas a Fênix se torna cinzas por questões óbvias.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Fuga

 Qual o estopim para uma fuga? Uma fuga mental, física, familiar, um tipo específico de fuga consciente e clara para um conjunto de coisas e pessoas, inclusive a si mesmo? Mas não uma fuga social total - um lobo sem alcateia -, mas uma fuga do nicho social particular, um distanciamento total de qualquer semelhança pessoal. O que faz uma pessoa sair da sua zona de conforto, em plena consciência inquietante da extrema periculosidade futura em viver um futuro incerto, totalmente jogado em cartas no limbo?
 Não há pontuação específica para esse problema apresentado, dado que o inconsciente se soma com o consciente, provocando o que o primeiro tem como amálgama de sentimentos e habitus de uma vida precocemente forçada à experimentação profunda de um pensamento escuro, interferindo em ações de primeira observação injustificáveis, incompreendidas, e não por pouco tempo, alguns nunca compreenderão essas ações.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A respeito da felicidade

Caminhado, sentindo a umidade do ar, sem cansaço e com fé no que está por vir. Talvez uma fé passageira, mas no que já consta uma pequena existência no espaço tempo. Sim, o talvez se transforma em certeza ao contato direto com atrocidades, tamanhas inacreditáveis aquelas. Foi o certo, o mais do que verdadeiro, o golpe humano provocado pela sua ilusória felicidade, um pico momentâneo em que se imaginou que a alegria durasse para sempre. Mas não durou. Durou poucos segundos, os mesmos que antecederam ao momento em que o desgosto trespassara teu coração. Não o órgão que bombeia sangue, mas sim a área do cérebro que é responsável pelos impulsos causados pelo sentimento, que usamos como alegoria o órgão do sistema circulatório, algo que me pego pensando no sentido de tal relação utilizada, o por que, o quando e o pra quê. Faço a hipótese de que pelo fato de seja por que a tristeza mata o que continua vivo fisicamente, ao passo que o coração - no sentido direto e verdadeiro significado - mata o que não gostaria de morrer. 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Surpresa III

Tudo se transformou em um vagão de trem e aquelas três pessoas sumiram. Eu tive a sensação de que elas se despediam de mim mesmo eu não as vendo. "Tchau amigos, espero vê-los de novo, um dia", eles ainda são meus amigos?

Mas e esse vagão de trem? Quem é esse do meu lado? Porque veio sentar justo do meu lado, ai como eu odeio quando eu um lugar com muitos lugares a pessoa vem e senta justo do meu lado! "Porque sentou do meu lado?""Ora, e porque não sentar do seu lado?". Pfff, ele não compreende, sei que terei muito o que odiar nessa viagem para a próxima estação, um indivíduo com essa personalidade animada e amigável, me poupe. 

Fragmentos de Janeiro

Às vezes fugia do hábito
Às vezes burlava as regras
Às vezes bebia demais
Às vezes fumava um cigarro
Ás vezes tentava viver
Mas nunca saía dos às vezes

Tudo é sem graça 
Pra quem não vê praça
Numa vida sem graça
Enquanto ela passa

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Eu costumo ficar triste, e assim eu choro. Meu nome não é Pedro e as coisas são assim, sim. É difícil entender a tristeza do outro. É comum o culparem por atos involuntários cotidianos sem considerar o que você está passando. 
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Após a tempestade vem a calmaria mas, após a calmaria há de vir outra tempestade? Ou a própria calmaria pode ser tão calma que se transforma em tempestade para dar um fim no tédio "calmárico"?



"Quanto mais tempo vivia, mais 
Tyrion percebia que nada era simples e 
que poucas coisas eram verdadeiras" 
A Fúria dos Reis, pp. 180