O dia estava ensolarado, o asfalto tremia no horizonte, de forma a minar o vapor de uma poeira gasosa presente no betume. Marcavam nove horas e trinta e quatro minutos quando do semáforo reluziu o verde, o mesmo instante em que o leproso atravessou a rua, em meio a tantos carros, motos, pessoas, cachorros e caos. Quem o acertou foi uma mulher, de sessenta e sete anos, que dirigia um Passat quadrado.
O perímetro urbano é seu próprio bioma, e faz as suas regras para a seleção natural. Isso é evidenciado pela dinâmica que os hominídeos se apropriam desse espaço.
Aquele leproso era conhecido, costumava beirar aquelas calçadas todo dia, tinha se aposentado por invalidez - a lepra era o menor dos seus problemas. Também era marcado pelo abandono da família, dos amigos, e mais intensamente, da cidade. Ele pedia água nos estabelecimentos, por vezes entregavam vinagre, para divertimento do grande circo itinerante de sádicos que frequentam a Rua do Bú, região central da cidade.
A rua do Bú era coloquialismo para o cenário, que inicialmente tinha sido pensado para ser um Boulevard nos moldes franceses, a rua era larga com um grande canteiro central. Mas faltou a adesão do bairro, que não tinha nenhum francês, mas sim uma parte de descendentes de espanhóis; uma população segregada de rebentos libaneses e; o leproso, que não estava em nenhum desses grupos. Tinha nascido em berço de palha, numa casa de taipa, caído numa família que colhia as mágoas e dores da subserviência forçada ao trabalho.
A mulher que dirigia o Passat viva no setor industrial, e tinha ido dirigir o Passat pela primeira vez na área central. Tinha tirado carteira e gostaria de mostrar à cidade - e principalmente aos senhores falastrões da rua do Bú -, que era independente, pois isso se mostrava raro: uma mulher com o passado e a marca que carregava desde nascença, conseguir habilitação para dirigir após completar sessenta e cinco anos. O Passat quadrado agora estava parado, com o leproso em baixo, e a motorista estava em transe, com as mãos fincadas na espuma preta do volante.
A mulher que vivia num dos bairros mais distantes do centro, e comprou o Passat mês passado, após ter completado dois anos de Carteira de Habilitação, estava chorando no volante. Estava sozinha. Tinha vivido uma vida sozinha, em face dos desafios que intermitentemente a impunham, de se casar, de se submeter a uma estrutura patriarcal vigente: era solteira, não tinha filhos, os pai morrera a dez anos e a mãe a sete anos e três meses. Não tinha irmãos nem irmãs. A melhor amiga era sua vizinha. E lá estava ela, no centro da cidade, longe de casa, e no antro dos libaneses e espanhóis. A única pessoa que ela conhecia naquela multidão de pessoas que cercavam o Passat, era o leproso que estava em baixo do seu carro.
As pessoas, naquele horário predominantemente homens, aposentados, descendentes de espanhóis e libaneses, tiveram a fúria de verem o humilde leproso ser atropelado. Aqueles mesmos homens que riam do enfermo bebendo vinagre e vomitando na calçada. O dono da "Vivienda", pensão que encarava o semáforo, abriu com violência a porta do Passat, e jogou a mulher no chão. "Assassina!" ele iniciou o linchamento verbal. A turba de descendentes árabes e ibéricos ia se voltando para a mulher. Viam-na como suja, mal quista por natureza, e esse evento foi o estopim para a concretização da violência que eles objetivavam. Foi o filho daquele dono de pensão quem estapeou o rosto da mulher pela primeira vez. E a sequência só teve fim quando ouviram o barulho de giroflex.
Eram nove horas e cinquenta e dois minutos quando alguns homens arrastaram o leproso para perto do meio fio, saindo debaixo do Passat e entrando debaixo do Sol. A mulher gritava de desespero, sangrava. A viatura tinha acabado de chegar e colhia depoimentos do dono da "Vivienda".
O leproso ainda estava vivo.